quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Os Bichinhos Maus

O título desta entrada parece quase o de um livro de histórias para criancinhas. É que, antigamente no Japão, havia a crença de que por detrás de cada doença ou maleita, estava uma insidiosa criaturinha que penetrava no corpo humano e a causava. Um ilustre desconhecido, mas que se crê ter residido em Osaka, escreveu em 1568 um compêndio de seu nome Harikikigaki, que identifica 63 doenças e os seus respectivos causadores, bem como curas através de acupunctura e remédios herbais.
O livro original está hoje em dia à guarda do Museu Nacional de Kyushu que defende que este livro teve um papel fundamental em dissiminar a medicina tradicional chinesa pelo Japão.
Segue-se a título de exemplos, algumas das bestas microscópicas que eram os bodes expiatórios das doenças na altura.







Então primeiro temos o Kashaku, um insecto mauzão que encontramos no fígado, que magoa o seu hospedeiro impulsionando-se para cima em direcção à boca do estômago. Os infectados têm a tendência de berrar enraivecidos ou então procurar actividades para descomprimirem, sendo que lhes apetece comidas àcidas e evitam as comidas oleosas. Pode ser detido pela acupunctura.




Na imagem seguinte, encontramos dois destes monstrengos.
À esquerda, aparece-nos o Hizo-no-Kesshaku, que gera problemas no baço e pode ser detido pela ingestão de shazenji (semente de plantago: http://pt.wikipedia.org/wiki/Plantago ).
À direita, podemos ver o Kanmushi, que é um parasita prejudicial que se agarra à espinha dorsal e encurva-nos as costas. Os infectados desenvolvem também um apetite por comida picante. As ervas mokko (Saussureae radix) e byakujutsu (Atractylodes macrocephala Koidz) são eficazes a combater o Kanmushi.





Gyochu (à esquerda na próxima imagem), é uma criatura mortífera e responsável pela lepra, e actua como um mensageiro do Submundo (dos mortos e não do crime, entenda-se). Na noite de Koshin-no-hi (uma noite que se repete a cada 60 dias no calendário chinês e tem uma importância simbólica), deixa o corpo para visitar o Enma-daio (o Senhor do Submundo) e falar-lhe das suas malandrices. O Enma-daio é conhecido por castigar as pessoas que se portam mal, reduzindo o seu tempo de vida.
O Haimushi (à direita na mesma imagem), uma criatura que com um terrível apetite por arroz, cria problemas nos pulmões. Se o Haimushi sai dos pulmões e não consegue reencontrar o caminho de volta, sofre uma metamorfose e transforma-se num hitodama(uma espécie de fada de fogo), que causa a morte do hospedeiro. A erva byakujutsu é capaz de afastar o Haimushi.





O Kagemushi aparece-nos de seguida. Tem uma versão feminina e outra masculina e ambas aparecem durante actos sexuais. (São por tanto uns chatos do caral... Enfim, voltando à "medicina"!) Quando um casal de Kagemushi se junta, enlançam-se pelos pés e o elemento feminino segrega um visco vermelho enquanto que o masculino um visco branco. (Nota: a minha fonte não referia a cura.)





Na imagem abaixo, à esquerda, surge-nos o Hizo-no-kazamushi, um verme ou minhoca que se aloja no baço e que causa uma perda ou ganho de massa corporal, de acordo com aquilo que o hospedeiro comer.
As ervas agi (ferula) e gajutsu (Curcuma zedoaria: http://en.wikipedia.org/wiki/Zedoary ) são eficazes a controlar a acção deste verme.
À direita, temos o Akuchu, que também se aloja no baço, consome o arroz ingerido pelo hospedeiro. Beber mokko é um antídoto eficaz.





O Haishaku (que podemos ver à esquerda, na próxima imagem), que se aloja na parte superior dos pulmões, é uma criatura cujo o nariz se abre directamente para o seu esterno. Os seus hospedeiros passam, sob a sua influência, a odiar qualquer tipo de odor, seja ele agradável ou malcheiroso, contudo gostam de cheiros pungentes como o cheiro a peixe. Outros sintomas incluem tristeza na fronteira da depressão e desejos de comida picante. Um uso suave, gentil e superficial da acupunctura é um tratamento adequado.
Kakuran-no-mushi (à direita na imagem abaixo), um verme de cabeça negra e corpo vermelho, que invade o estômago e causa diarreia e vómitos. É conhecido por subir à boca do hospedeiro e bicar-lhe a cabeça toda. As ervas goshuyu (Euodia rutaecarpa), shazenshi e mokko são eficazes na luta contra este verme.






Atenção que vem aí o Umakan, uma besta que causa problemas cardíacos. Infecta pessoas ao ar livre que estejam expostas ao Sol ou próximas de fogo. É tratável com Acupunctura.





Koseu ou Kosho, tem o corpo com aspecto de serpente, uma cara com uma barba mal semeada e esbranquiçada, e usa um chapéu que o protege dos remédios contra ele usados (Àparte: simplesmente brutal a imaginação dos médicos da altura.!!). Gosta de beber sake doce e consegue falar.








A seguir, temos o Kameshaku, bicho este que come arroz e se faz munir de um chapéu-de-chuva ou uma sombrinha, que o protege da medicina. Pode contudo ser destruído pela ingestão de feijões selvagens.





Ainda temos o Koshi-nu-moshi, que voa pela boca do hospedeiro adentro, encaminhando-se para a zona baixa das costas. De lá causa diarreia, suores e dores no peito. As ervas mokko e kanzo (raíz de Alcaçuz [Note-se a raiz arábica do nome da planta em português, claro indicativo que a erva terá sido conhecida por cá e introduzida pelos árabes, por estes trazida do oriente.]) são eficazes a tratar da saúde a este bicharoco (podemos vê-lo abaixo de asas abertas).









Outros dois bichinhos nada simpáticos são os que nos surgem na próxima imagem.
O Chishaku (à esquerda), que surge no estômago depois do hospedeiro ter sofrido uma doença grave. Pode ser controlado pela administração shukusha (Cardamomo siamês selvagem).
Já o Hizo-no-mushi (à direita), vive no baço, podendo causar tonturas e ardores quando agarra violentamente os musculos do hospedeiro com os braços e as suas poderosas garras. Pode ser detido pela ingestão de mokko e daio (ruibarbo).










Na imagem seguinte, um outro par de malfeitores mitológicos.
Kiukan ou Gyukan, habita o peito e a sua acção sente-se à hora da refeição. É uma criatura particularmente difícil de combater, mas a acupunctura funciona contra ela.
O Kishaku é um ser vermelho escuro que faz com que o seu hospedeiro desenvolva um apetite nada saudável por comida oleosa. Pode ser detido, comendo-se estômago de tigre.









Já o Jinshaku, é como que um pequeno touro que percorre loucamente todo o corpo. As vítimas desta besta microscópica sofrem de pulso fraco, uma tonalidade de pele escura, um desejo por comida salgada e mau-hálito. É tratado através de acupunctura.





Hishaku (à esquerda) aloja-se no baço, mas afecta maioritoriamente mulheres. Os sintomas incluem um desmesurado apetite por doces, uma tonalidade de pele amarelecida, e uma tendência para entoar melodias murmurando. Pode ser detido pelo uso de acupunctura em torno do umbigo.
O Hinoshu também habita o baço e tem o aspecto de uma pedra. Permanece adormecido até o hospedeiro visitar uma zona fortemente visitada e cheia de gente. Nessa situação, o Hinoshu rebola e cai, como se se tivesse pedras a rebolar dentro do corpo, deixando o hospedeiro zonzo. O tratamento obtém-se pela acupunctura.









É-nos fácil hoje em dia gozar com tais crenças e pseudo-ciências, tendo em conta o actual conhecimento técnico-científico da nossa medicina. Mas podemos fazer um paralelo com os factos científicos que hoje conhecemos. A verdade é que sabemos que muitas das nossas maleitas são criadas por seres vivos orgânicos que conhecemos como vírus, bactérias , fungos e micróbios, já para não falar nos chatos. Afinal, os japoneses não estavam assim tão longe da verdade. Quanto aos tratamentos, sugiro que façam uma busca na net pelas plantas mencionadas que ainda hoje são reconhecidas pelas suas propriedades curativas. Por outro lado, a acupunctura no final do século passado passou de pseudo-medicina para a agora chamada medicina alternativa. O seu historial de sucesso prático tem cerca de 5 mil anos em história escrita. Ao compararmos a medicina japonesa dessa época, com a nossa na mesma época, que ainda usávamos sanguessugas para curar febres, que mandavamos mulheres que conheciam o poder curativo das plantas para a fogueira por bruxaria, talvez com isso em mente possamos dar o desconto e perceber que se calhar, esta medicina antiga não é assim tão disparatada como à partida nos possa parecer. Não naquela época e relativamente a nós.





Até à próxima...

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