sábado, 22 de outubro de 2011

A Via da Mão Nua - Parte 2_Personalidades

O fim-de-semana identificado na imagem (ver imagem abaixo) foi muito importante para mim por variadas razões, mas a que interessa para este post é o facto de ter feito nesse estágio o meu primeiro exame de Karate. Passei de nono kyu para oitavo kyu ou, em termos leigos, de cinturão branco para cinturão amarelo. Embora tenha corrido o risco de parecer pomposo ou presunçoso na frase anterior, esta última foi pensada com várias intenções.

O seu primeiro objectivo foi chamar a vossa atenção para os graus de aprendizagem segundo os japoneses. Qualquer grau de kyu pertence a um iniciado de qualquer nível (cintos branco a castanho). Qualquer pessoa que possua um cinturão negro (merecido ao invés de comprado apenas :) tem um grau de dan. Na origem do Karate, só haviam duas cores de cinto que era usado para fechar e segurar o gui (nome dado ao fato de treino tradicional do karate). Essas duas cores eram o branco e o preto, os alunos e os mestres. Mas mesmo os mestres são sempre alunos, mesmo quando têm o grau mais elevado são alunos. Há sempre que continuar a pesquisar, que procurar aprender mais. Uma história que se conta entre Karatecas é que um grande mestre, às portas da morte, deitado, executou um golpe, o primeiro golpe que se aprende no Karate que é o murro simples chamado O-itsuki. Ao fazer o golpe, o mestre exclamou "Finalmente consegui atingir o verdadeiro itsuki com kime". E morreu. Ou seja, devemos treinar e meditar na nossa arte até ao fim pois é, como em qualquer acto artístico, um acto filosófico que como tal tem consciência de ser uma verdade perpetuamente incompleta.

O segundo objectivo da frase presunçosa chegar ao ponto de falar das questões do cinto. Foi a ocidentalização do karate que gerou os cintos de variadas cores. Aparentemente, nós ocidentais não conseguimos fazer nada sem um reforço positivo, utilizando um termo da psicologia de Watson, e esse reforço positivo foi dado como subindo nas fileiras através dos exames. "Se passares, levas um cinto novo para casa e por implicação toda a gente saberá que és um grau mais sabedor". A tal história do ser um Winner ou um Loser... malditos americanos... Para mim, o cinto não interessa. Interessa o que a pessoa demonstra em atitude e em capacidade física, pois aí se vê de facto quem é o bom karateca. Como indica o Mr Miyagi no filme Karate Kid (pronto, ok... os americanos fazem algumas coisas bem feitas...) o Karate está no coração e na mente [que para mim são a mesma coisa: o lado emocional e o lado racional da mesma moeda]. A mon avis, não é o cinto que faz o karateca, tal como "não é o hábito que faz o monge", citando um ditado do meu povo.

Mudando o assunto, o senhor que figura na imagem acima é o Sensei Taiji Kase. Era o sensei de grau mais elevado da associação de Karate segunda a orientação da qual eu primeiro treinei. O Shotokan praticado era muito tradicional, isto é, restringia-se muito ao praticado originalmente pelo Sensei Funakoshi, que julgo não estar em erro ao dizer que foi mestre directo do Sensei Kase. Como ainda era um mero cinturão branco, o meu trato com o sensei Kase foi muito breve. Ele deu um pequeno mas esforçado treino a alunos de 9º,8º e 7º kyu, com a ajuda dum outro sensei português que traduzia do inglês para português. No final do treino, tivémos uma pequena sessão de perguntas e respostas com o sensei Kase, no início da qual ele nos falou um pouco de si mesmo e da sua história deveras incrível. Aparentemente, no Japão, quando ele era miúdo, o Karate era tão tido em conta pela sua natureza letal que só a partir dos 18 anos é que se podia começar a praticá-lo. Assim sendo, o sensei Kase quando gaiato treinou judo, arte na qual ele também chegou a dan. Isto levou a que a especialização eventual do sensei Kase no Karate fosse em projecções. Outro facto que me ficou na memória foi o de ele ter treinado para Kamikaze na Segunda Guerra Mundial. Acabou por nunca ter de utilizar esse treino, pois a guerra entretanto terminara. Uma rapariga presente perguntou-lhe o que ele sentira, depois de tanto treino e condicionalismo psicológico, quando percebeu que não chegaria a ter de ir no seu voo final. A sua resposta foi cândida e breve, mas pungente e acompanhada dum sorriso honesto: "Relief" (alívio). Ele contou-nos que os Kamikaze não eram doidos nem zelotas, apenas pilotos que sabiam que se não fizessem aquele sacrifício, a sua família seria para sempre desonrada em público, ou seja, para toda a restante sociedade nipónica tornar-se-iam intocáveis. Seriam ignorados, impossibilitados de qualquer bom salário, viveriam em constante miséria. No Japão, a honra é mais valiosa que a vida... Pois é, graças ao Karate eu conheci um piloto Kamikaze... vivo!

Outro sensei extraordinário que conheci foi o sensei Dirk Heene, que podem ver na foto acima. Com este sensei tive um trato maior, ou melhor dizendo de maior proximidade, pois tive a honra de por ele ser chamado duas vezes para demonstrar as combinações que iriamos treinar. Quando cheguei ao pé dele e depois de feita a vénia, o sensei perguntou-me o meu nome. Eu respondi Alexandre. Ele não percebeu. Então, não querendo fazê-lo perder tempo, eu ri-me e disse Alex. Ele virou-se para mim, com a maior das naturalidades e disse: "No, please I wish to learn." Agora, se o sensei fosse uma pessoa rude ou demasiado orgulhosa poderia ter achado que eu não acreditava que ele pudesse reproduzir o som correcto do meu nome na minha língua e ficasse por isso ofendido. Tal não foi o caso. Eu disse as 4 silabas do nome pausadamente e ele repetiu-as e depois disse tudo seguido conseguindo um som bastante próximo de como soa em Português. Eu fiz um sorriso de satisfação, porque adoro a minha língua e tive gosto tanto em ensiná-la como no sensei querer aprendê-la, por muito que fosse apenas o meu nome. Mas sinceramente acho um acto de humildade estarmos dispostos a aprender de quem quer que seja, mesmo que seja hierarquicamente inferior a nós e/ou bastante mais novo, e essa foi a mais preciosa lição que o sensei Dirk Heene me deu. À segunda vez que lá fui, ele chamou-me pelo nome!

Estes são exemplos mais "mediáticos" (entre aspas porque não são pessoas famosas apenas muito conceituadas neste meio) do tipo de pessoas que encontramos no Karate. No meu dojo, por exemplo, existem pessoas incríveis, cada um à sua maneira, de vários extractos etários e camadas sociais, mas todos humildes, acolhedores, sem peneiras, seres humanos de primeira categoria.
O contacto com eles foi sem dúvida um dos maiores benefícios que tive e tenho no Karate, pois através do seu conhecimento, da sua habilidade de puxar por mim, de me acolher, de me ensinar, de me proporcionarem experiências, eu cresci imenso como ser humano, e tenho o devoto desejo de prosseguir nesse caminho interminável que já comecei.

Não sei se alguma vez perceberei o Kime ou o O-itsuki como o sensei moribundo da história que acima vos contei, mas não tenho quaisquer dúvidas de que o caminho que percorrerei na tentativa de chegar a essa compreensão, falando tanto de forma literal como figurativa, vai ser tão digno de percorrer como árduo e satisfatório!


Sayonara... por agora!

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